No
segundo semestre de 2013, entre altos e baixos, conheci uma comunidade
alternativa, independente e autossustentável, no sul do Brasil. Ao ingressar num
dos templos, bem simples diga-se de passagem, senti uma energia boa no ar, fui
me harmonizando com o ambiente e percebi algo familiar. Senti as vibrações da
montanha, do círculo de fogo de ancestrais indígenas, me sintonizei com as orações
espiritualistas sem apego ritualísticos ou dogmas de alguma religião pré-estabelecidas e,
sobretudo, senti bater muito forte um desejo de trabalhar mais a fundo as
mazelas que sinto existir dentro de mim.
Nesse
artigo publico um relato escrito logo após meu reestabelecimento vindo de um longo transe
de cinco horas, quando senti a criatividade aguçada, ainda com as lembranças
latentes daquela experiência, que considero um divisor de águas na minha vida, pois o esclarecimento trouxe o poder da
decisão, que os ignorantes não têm. Costuma-se dizer que a ignorância é o berço
da cegueira; e a cegueira, o berço da felicidade. No entanto, aprendi a encarar
a realidade de frente desde que meu pai morreu em 1989, quando tinha apenas 14
anos. A notícia, na ocasião, foi dita sem rodeios por um amigo de meu pai,
quando acabara de acordar, ainda deitado na cama. Na noite anterior meu pai
havia sido internado na UTI de um hospital do bairro por problemas que já
enfrentava há alguns meses. Enfim, a partir desse momento, todas as dores e
frustrações que vivi nesses quase 25 anos que se passaram me remetiam à passagem de 3 de abril de 1989.
“Amanhã
será melhor. Um chamado silencioso desse gênero merece um testemunho
emocionado. Não podia imaginar para onde Deus estava me guiando quando me afundei
em sentimentos de sofrimento e perda. Poderia ter seguido caminhos obscuros e
sem volta, causando uma ruptura maior e definitiva, mas o silêncio se fez
prevalecer para que o espetáculo ainda tivesse um segundo ato. De repente diante
da possibilidade de cura, me entreguei, aromas, paladares, sentidos aguçados
buscando o desconhecido. Fé, esperança, medo, insegurança, talvez sua mistura
formassem o caldo grosso diante dos meus olhos. Impossível acreditar que
estaria ali há algumas semanas. A cura diante dos meus olhos. Qualquer
prognóstico seria mera especulação. Seria? E foi.
Yin-Yang,
simbologia do equilíbrio entre os opostos. E foi exatamente isso que iria
enfrentar naquela imersão, uma verdadeira batalha astral. No início vi as
trevas. Pude experimentar diante dos meus olhos o mal que já causei ao próximo,
o próximo mais próximo, senti o mesmo medo, o mesmo ódio, o mesmo terror, o
pânico foi extremo, não conseguia mirar ao lado, meus olhos reviravam, minha
boca secou, meu estômago embrulhado, meus músculos tremiam, era o frio tomando
conta de mim, fogo, olhos vermelhos, trevas. Pude experimentar tudo aquilo que
deferi àqueles que maltratei, àqueles que a mim zelaram confiança e respeito,
dedicaram amor. Me questionei. Sou eu? Busquei apoio. Veio meu pai, sereno, me
abraçou. Olhou-me e sorriu, me beijou. Trocamos olhares, estava perdido, estava
aflito, deprimido e ao mesmo tempo querendo fugir. Coração pulsando, quase
enfartando. Roguei por todas as forças do bem, e por um tempo perambulei sozinho,
enfrentando a fera, cara a cara, olhos nos olhos. Tive medo, mas uma frase a mim dirigida
recentemente me sustentava: "Aprenda com você mesmo, seja seu professor,
seu crítico, seja fiel a você mesmo". Fui trazido de volta às luzes.
Orações, cantos, chocalhos, cordas e tambores... Uma flauta doce. Recebi apoio,
mas não sai do transe. Sim, recebi apoio, de todas as entidades e forças ali
presentes. Busquei apoio num fio de lucidez que ainda emanava da crença que
tenho nas minhas origens. À gênese voltei, me vi um golfinho nascendo,
renascendo. A placenta protegida por uma áurea azul, quase da cor do mar,
fluorescente. Uma benção que me aquietou.
O
cântico alto preenchia o tempo e o espaço e nele me refugiei:
Aho, aho, aho Grande Espírito
Ecoou pela montanha
Até o espaço infinito
Aha, aha, aha minha Mãe Terra
Mãe de todas criaturas
Todas que habitam nela
Raiou, raiou, raiou, raiou o dia
Bate o tambor, Dança do Sol
Meu coração sente alegria
A noite
ainda nem começara e tive que suportar uma pressão avassaladora, um medo terrível.
Orações, meditação, escuridão, apenas as chamas da fogueira, o cheiro do
incenso, mas a movimentação era grande. Constantes limpezas coletivas. Catarse.
Tentava me concentrar e manter um laço de consciência, mas às vezes flutuando,
às vezes saindo do corpo. Medo de não voltar. De repente a lucidez veio maior.
A luz acendeu e ascendeu. Cantos, hinários, orações, força que vinha para
serenar, mas ainda em transe. Sentia que algo mudara, mas ainda era pouco, e a
noção do tempo foi totalmente perdida.
Humildade
para admitir que estava diante de uma experiência única, sem precedentes,
entregue de corpo e alma. Deixei que fosse guiado para onde quer que fosse,
pois precisava da cura e do aprendizado, do autoconhecimento, precisava
suportar todas as dores para que viesse a conversão, pois o mal já havia sido
consumado. Precisava entender do que sou feito, de onde vim e para onde vou.
Onde estou? Precisava sentir as mesmas dores alheias que havia semeado para
suportar o drama e tentar revertê-lo. De repente, uma segunda dose. Duas doses
altas de ânimo, uma oração antes e ... sentia descer amarga, mas limpando a
alma. Prossegui meu trajeto até meu assento, meu aconchego, meu porto seguro.
Foi então que outra dimensão se abriu diante de mim. Pude ver que a mente
corrompia a alma. Estava ainda envolto do mal que vive impregnado no mundo
externo, na coletividade, no subconsciente, nos dramas passados dos outros e da
minha história.
Uma
luz brilhava na minha fronte, senti o aroma de flores, senti que o corpo já não
era obstáculo. As náuseas passaram e tive certo controle. Mas as alucinações se
fizeram mais fortes. Deixei-me ser conduzido, pois senti vibrações de fé e
amor, fui seduzido pela paz e um caminho se abriu. Passei um tempo sob o
anacronismo, mas diante da visão do amor, sorria, chorava de alegria, como que
abraçado por uma bondade colossal, que me deu respostas, respostas íntimas,
respostas esclarecedoras sobre quem sou, onde estou e para que estou. Senti
medo, vi a raiz do preconceito que ainda resta nos homens e em mim, pois a
mente ainda estava presente, obstruindo o fluxo. Mas era o equilíbrio das
forças de forma bruta, compacta e dilacerante que estava sendo colocado à
prova. Conseguia com um esforço desumano suportar o frio. O fim estava próximo,
mas não entendia como o amor e a morte podiam habitar o mesmo ambiente. De
repente o amor vinha em forma de um sorriso familiar. Estava sendo amparado por ele, que vinha na minha direção em saudação, como que conferindo se
estava no rumo certo. Às vezes percebia forças ruins me puxando, mas a fé e a
vontade eram tão grandes que nada me tirava a concentração sobre minha própria experiência.
Às
vezes precisava de ajuda, buscava com o olhar faces conhecidas, apoio para
suportar o frio que aumentava, frio interior, não havia proteção que fizesse
efeito. Imagens dos meus rebentos vinham à tona quando sentia que o medo e o
frio cresciam e a lucidez me escapava. Queria estar de olhos abertos. Ao
fechá-los me deparava com a loucura. O perdão veio num dos momentos mais ricos
de alegria e amor. Meu autoperdão veio como cura, para prosseguir o caminho.
Veio também a certeza de quem sou, e que meu pacto é com o bem. Veio a certeza
de que estava diante de uma revelação. A missão foi dada há tempos, já tinha
essa sensação, uma impressão tênue, mas agora estou seguro que a tenho sob
controle em minhas mãos. A mim foi confiado muita coisa, sinto a
responsabilidade, e o amor é o instrumento de execução para que a missão tenha
um fim. Amor, puro amor, amor, amor...
Sentidos
aguçados, visão concatenada em várias dimensões, aromas correndo pelas vias
aéreas, os músculos saltando visivelmente, os sons estridentes com ecos em
todas as direções. Novamente sou levado, levito, por qualquer caminho, sinto
inúmeras emoções a flor da pele. Medo, fome, sede, dor, frio extremo, calor,
angústia, uma mistura de tudo ao mesmo tempo, e de repente uma seringa penetra
minha nuca por mãos bondosas. De certo uma manifestação anímica. Agradeci a
dose com o olhar submisso. Não entendia nada, mas entendia tudo. Flutuava entre
o saber e o desconhecer. Caminhava adiante. Meus laços com o bem eram
fortalecidos, e a correspondência com o amor me conduzia para ter a confiança
mínima diante da missão a mim confiada. Sinto que tenho um grande desafio de
superação a fazer. Fui colocado diante de dilemas pessoais, um a um, pude
dialogar com eles. Pude encarar o mal. Suportei docilmente, sem arrogância, com
o desespero velado, ainda que o tinhoso estivesse ali presente. Fui corajoso,
senti orgulho, me olhei de frente sem a vergonha de ver a face obscura. Mas
olhei-me com bondade, porque vi uma doença prestes a ser aniquilada. Se não foi
ainda, será, pois assim reina a vontade, a minha vontade.
Calado,
mas em pensamento cantando, movendo os braços, arranhando as pernas, pois o
frio era intenso, no alto de uma montanha me avistei integrando uma tribo.
Via-me como parte daqueles respeitáveis índios. Comecei a marchar, bradando seu
hino, estufando o peito e feliz com um sorriso de guerreiro pronto para a
batalha. Vou vencer, pensei, esse era o sentimento, uma vitória anunciada se
manifestava contra o lado escuro que reside em minh’alma. A dança se
intensificava, o calor estava apenas no desejo, porque no alto daquela montanha
nevada meus pés estavam congelados. Trêmulos, estavam trêmulos meus membros
inferiores. Mas continuei marchando, porque tenho uma missão, é um caminho sem
volta. Estava focado nos laços com o destino que está reservado para mim.
A visão estava clara, e o pajé me olhava com firmeza, passando confiança, e me
fazendo acreditar que sou capaz. Senti uma onda de força numa magnitude capaz
de me fazer explodir em alegria. Um amor colossal vinha de dentro, mas me contive,
pois minha vontade era pular, gritar, havia me encontrado dentro do caos.
Queria agradecer, queria festejar, queria chorar, precisava me manifestar, mas
consegui conter o impulso e a postura foi mantida. Com respiração ofegante, mas
o alinhamento sempre presente. Coluna ereta, cabeça erguida, pés e mãos
alinhados, concentração naquilo que buscava, o autoconhecimento.
Amor,
sim. A resposta para tudo. Sem dúvida, o aprendizado estava assimilado. Mas as
forças eram mínimas, não entendia porque a morte, representada pelo frio
interior, ainda tomava conta e crescia. Porque tenho que me entregar, por quê?
Queria viver para dar continuidade, mas Deus estava presente, então confiei. Me
entreguei. Não me lembro de tudo, faíscas de consciência me ligavam à vida, mas
o transe foi soberano, me conduzindo à mensagem sagrada. A morte foi
necessária, ela foi boa, não houve ruptura. A morte foi sinônimo de
renascimento. A morte foi minha conversão. Quando voltei à vida, vi que um
aprendizado transcendental de ordem cósmica e de profundidade infinita ocorrera
dentro de mim. Chorei com alegria por ter visto o rebento de um novo ser. O
amor próprio cresceu numa curvatura gigantesca, como uma árvore patagônica
brotando sob meus pés, mais ainda, como uma aeronave extraterrestre viajando a
todos os continentes à velocidade da luz. O universo é grande e infinito, mas o
amor próprio que nasce humilde, servindo de base para a missão que se faz
presente, foi uma sensação de dimensão indescritível. Fui agraciado pela
Providência, e a libertação do mal veio como uma dádiva pela persistência, pela
busca e a coragem de atravessar a fronteira. A síntese de tudo isso está na
confiança que hoje tenho sobre meu rumo. Agora, devo seguir a vida
real, com todas as consequências geradas pela negatividade que disseminei. Mas,
de outra forma, agora tenho a ferramenta mais importante no coração, o amor
maior, próprio e ao próximo. O que foi perdido não se recupera mais, mas o que
pode ser reconstruído só depende de mim. Vamos à luta.”
Pablo Bucciarelli
15/7/2013
Concentração - Aliança Santo Daime e FSI (Fogo Sagrado de Itzachilatlan)
Céu do Patriarca São José
Patrono Valdete Mota de Melo
Florianópolis, Santa Catarina
Brasil