A
felicidade é estar com a natureza, ver a natureza e conversar com ela.
— Tolstói, em “Os Cossacos”
Vinte e oito de julho de 2014. Onze horas e cinquenta e dois minutos da
manhã. Calor e dia ensolarado. Trinta e dois graus Celsius no termômetro. O helicóptero
se aproximava. Silvosvindos do colo da montanha ecoavam por toda a encosta. Eu
já não suportava mais a mescla dos efeitos negativos oriundos do contraste
térmico, depois de uma noite de trinta graus abaixo de zero e naquele instante tendo
que lidar com a boca seca. Ignorei os sinais do corpo e da mente, mas algo
exigia atenção. Algo estranho acontecia. Eu ascendia rumo ao cume, caminhava a
menos de vinte metros do topo, débil e lento. Estava por conta própria. Na
mesma parede mais três alpinistas, todos da Bielorrússia, e um deles falando um
inglês paupérrimo. No limite da minha vontade, resolvi perguntar:
– O que foi?
– Pediram para descer.
– Por quê?
– Não sabemos.
– Vou seguir.
Silêncio.
Cheguei ao cume, e minha visão estava turva. O dia era claro, mas a
fadiga e o medo me enevoaram os sentidos. Calei!
Cheguei ao cume, mas não era como eu queria. Uma mulher, ou melhor, uma
jovem deitada. Olhou-me. Eu parei. Olhei de novo, mas não entendia, depois
entendi, mas não queria acreditar. Ela ainda aflita, me olhava com cara de
culpa, mas eu não falei nada. Entendi tudo depois em segundos, o helicóptero,
os silvos dos socorristas no colo da montanha, seu flagelo, minha dor, minha
tristeza... Ao seu lado, o corpo vazio.
Espaço não havia para a celebração da conquista, que me era lícita, e
que o terror da morte abafava. Chorei silenciosamente, por ter chegado ao cume em
um território de todo desconhecido, em que depositei olhos de primeira vez, mas
estava exaurido e sem tempo. Uma nova espera seria impossível, e não há espera
possível para a morte. Os socorristas chegaram e me deram a ordem. Não hesitei,
pois já era o limite do tempo para iniciar a descida. Olhei novamente a garota,
tive compaixão, mas dei as costas e parti.
Em julho de 2014, depois de um breve planejamento, fui para a Rússia com
vários projetos. O principal deles era o de realizar a viagem de trem pela
maior ferrovia do mundo, a Transiberiana, com quase dez mil quilômetros de
percurso. Também, queria aproveitar para subir uma montanha, de preferência
alguma bem sedutora, levando na bagagem meu estilo de como fazer as coisas:
leve, rápido e com espírito selvagem.
Chegando à São Petersburgo, aperfeiçoei meu roteiro, pois sou do tipo
que gosta de seguir o fluxo e aproveitar as oportunidades ao longo da viagem. Já
em Moscou, depois de oitocentos quilômetros de trem, fiz minhas últimas
pesquisas para decidir os detalhes finais da aventura até as montanhas do
Cáucaso, divisa da Rússia com a Geórgia e a Ucrânia. Cáucaso, em russo Кавказ (Kavkaz), é o nome dado a uma região da Europa oriental e da Ásia ocidental,
entre o mar Negro e o mar Cáspio, que inclui a cordilheira de mesmo nome e as
planícies adjacentes. Essa região marca uma das fronteiras entre a Europa e a
Ásia, fazendo com que alguns de seus países sejam considerados
transcontinentais, como a Turquia, cujos territórios dividem-se numa porção geograficamente europeia e noutra
asiática. A região possui duas partes: uma ao norte e outra ao sul,
respectivamente Ciscaucásia e Transcaucásia. Na minha cabeça uma semana seria
suficiente para chegar até a base do Elbrus, me organizar, alugar equipamento,
subir em ataque único e depois voltar para Terskol, antes de retomar minha rota
Transiberiana. O Cáucaso foi um local de grande importância na literatura russa.
Na cidade de Yasnaya Polyana, localizada duzentos quilômetros ao sul de Moscou,
nasceu e cresceu Liev Tolstói. Lá também seu pai foi assassinado por um dos
mujiques1. Esse acontecimento fez com que Tolstói começasse a sua
incansável busca pelas razões que levam o ser humano ao seu limite. Os embates
com a sociedade, suas castas, Deus, e então ele começou a escrever, e se tornou
o ícone russo, predecessor de Dostoiévski e um dos gigantes da literatura
mundial. A vivência de Tolstói no Cáucaso o inspirou no romance Os Cossacos
(1863), que retrata a vida de camponeses numa área remota da região. O modo de
vida campesino era uma das obsessões de Tolstói. Foi em Astapovo, no Cáucaso, cidade
a aproximadamente trezentos quilômetros ao sul do Moscou, que Tolstói morreu,
num vagão de terceira classe na estação de trem – não suportava mais ser
reconhecido publicamente e preferia a companhia dos miseráveis, após renunciar
ao estilo de vida aristocrata, se divorciar da mulher e resolver refugiar-se
até o fim de seus dias, onde serviu como tenente nas Guerras do Cáucaso e
Crimeia. Ele queria refletir solitário sobre o sentido da vida. Já tinha
parado de fumar, beber e comer carne. Não conseguiu concluir a viagem, pois morreu
de pneumonia na estação de Astapovo, aonde chegou a ser tratado como indigente.
Peguei um voo de Moscou a Nalchik, capital de Cabardino-Balcária, localizada
a sudeste da cordilheira do Cáucaso. No avião, consultando a comissária de
bordo, busquei informações sobre ônibus à Terskol, pequena cidade de onde
sairia caminhando para a montanha. Realmente, o maior desafio na viagem pela
Rússia foi o idioma. Poucos russos ou imigrantes de países vizinhos eram
capazes de comunicar-se em inglês. Sem sucesso, a aeromoça tentou me ajudar, e
me dando por vencido caminhava para sair da aeronave quando um dos passageiros
veio em minha direção dizendo em inglês: “Boa sorte no Elbrus!”
– Você fala inglês?
– Um pouco.
– Sabe onde consigo um ônibus para Terskol?
– Espere. Vou ligar!
Uma conversa em russo e alguns minutos depois disse o amigo: “Você pode
esperar por uma hora? Você vai de carona com meu tio. Ele tem um hotel e se
você não tiver onde ficar, pode hospedar-se lá.”
Espantei-me com tudo aquilo, não esperava tamanha solicitude e energia
daquela pessoa. Logo me orientou o caminho do carro que nos esperava e fui
destemido. Senti uma atmosfera boa naquele homem, que logo começou a contar a
história de sua vida. Dimytri disse que trabalhava em Moscou, mas estava ali
para o funeral de sua avó. Seus tios já haviam feito as vezes na despedida e
teriam que retornar à cidade natal, cerca de duas horas de furgão. Ao encontrar
a família inteira me esperando, consolei-os pela perda da matriarca e os agradeci
imensamente pela carona. Dimytri pediu que não me preocupasse com o idioma,
pois seus tios já sabiam das minhas necessidades. Embora falassem apenas russo,
tentei comunicar-me com algumas palavras que havia aprendido com a ajuda de novos
amigos na passagem por Moscou. Também trocamos sinais e fomos compartilhando comida
e vislumbrando a paisagem rumo ao Cáucaso. Meu semblante era de alívio com a
ajuda, e agradecimento. Meu olhar estava fixo nas montanhas nevadas que se
acercavam ao longo da rodovia. Sentia a brisa gelada no vale do rio Baskan que
corria paralelo ao nosso veículo, e entre uma parada e outra, para dar passagem
ao gado ou para o controle dos militares em serviço, seguíamos para o destino sonhado.
Eu queria mais do que nunca fazer algo especial na minha viagem, de preferência
nas montanhas, algum feito esportivo dentro do meu estilo. Escolhi a dedo a
montanha mais alta da Europa, um dos Sete Cumes2, numa região de
paisagem exótica com glaciares, flores de cores vivas e um rio caudaloso que
corta o vale, o Elbrus (5642 msnm3), um estratovulcão
extinto, nada mais do que o décimo monte de maior proeminência4
topográfica no mundo. Seu pico com neves eternas alimenta vinte e
duas geleiras que, por sua vez, dão origem aos rios Baksan, Kuban e Malka. Já
em Terskol, chegando ao hotel, senti-me um alienígena, pois ninguém falava
outro idioma a não ser o russo. De repente, eis que vem um rapaz saltitante
falando inglês na minha direção: “Espanhol?”
– Não. Sou brasileiro...
– Incrível, brasileiro... Seja bem vindo amigo. Diga quais são seus
planos e assim posso te ajudar.
– Bem, vim subir o Elbrus e preciso de equipamentos, pois minha viagem é
longa e não trouxe nada para escalar.
A alteridade se revela mais uma vez!
Artyom era guia de alta montanha e instrutor de snowboard de origem ucraniana. Logo nos tornamos próximos, muito em
função dos meus planos. Depois conheci mais dois personagens de Terskol durante
essa passagem meteórica pelo Cáucaso: Vladislav, compatriota de Artyom, e Dasha, de Pyatigorsk, norte do
Cáucaso na Rússia. Fui tratado como amigo, em nenhum momento senti-me um
estranho, hóspede do hotel ou um turista qualquer. Parti para a Seven Summits
Club5, onde reuniam-se os alpinistas da região e
aluguei os equipamentos necessários para meu plano. Claro que no primeiro
momento fui questionado, não somente pelos novos anfitriões, mas também pelo
pessoal do clube. Imaginem um brasileiro, desconhecido, que mal conseguia
comunicar-se, que nunca havia estado ali antes, dizer que alugaria os
equipamentos por apenas três dias, mas talvez voltasse antes, e que faria a
escalada solo sem aclimatação. Considerando ainda que a maioria dos turistas vêm
apenas para esquiar ou escalar utilizando o serviço de teleférico – diga-se de
passagem, que prontamente recusei – tive que lidar com alguns olhares
desconfiados que me desafiaram ainda mais, pois já sabia que a tarefa seria
difícil. Primeiro, os meus próprios dilemas, agora incrementados por uma nova
carga de responsabilidade. Recebi conselhos desencorajadores, especialmente
direcionados aos males da altitude.
Interiormente telegrafei cada comentário como instrumento de motivação, mas
senti que a montanha era muito mais desafiadora do que esperava. Temperaturas
abaixo da faixa de vinte graus negativos na madrugada, desnível de mais de
quatro mil metros numa única jornada, peso da mochila acima de vinte quilos,
falta de experiência em escalada no gelo, estar sozinho, não saber a rota, não me
aclimatar, não estar totalmente seguro quanto ao nível de proteção térmica das
minhas roupas – estaria exposto por muitas horas a uma temperatura extrema, e qual
a alimentação conseguiria ingerir nessas condições. Enfim, eu estava rodeado de
questões para resolver comigo mesmo. Havia decidido por aquilo, então não
poderia reclamar.
Convencido de que a situação merecia mais atenção, tratei de me
aproximar dos novos amigos e tirar as dúvidas que ainda pairavam sobre minha
mente. Jantei sozinho, mas logo me convidaram para uma rodada de cerveja. E
daí, partimos noite adentro. Vladislav também trabalhava no hotel como barman e nos servia várias doses de
bebidas especialmente preparadas para a ocasião. E conforme bebíamos, mais nos
divertíamos. Eu contava histórias do nosso país e eles compartilhavam suas
experiências na Rússia, vivendo sob a clandestinidade. A Ucrânia sofria com os
ataques da grande pátria naquele momento, e não poderiam regressar sob pena de
irem direto para o serviço militar, ou melhor, para a zona de conflito. Na
Rússia, também não podiam assumir sua condição, pois seriam obrigados a
regularizar sua documentação com o risco de também seguir para o serviço
militar. Estavam vivendo sob a pressão de dois regimes rigorosos, mas naquela
noite todos trocavam experiências e perspectivas com alegria.
Desde novembro de 2013 vem ocorrendo uma onda de protestos na Ucrânia.
Esses protestos deram-se inicialmente contra o governo do ex-presidente Viktor
Yanukovych, principalmente na Maidan (Praça da Independência), no centro da
capital Kiev. O motivo principal seria o fato de Yanukovych ter decidido na
época pela não assinatura do acordo político-comercial de cooperação com a
União Europeia, pretendendo reforçar as relações subalternas de seu país com a Rússia.
Prédios públicos foram ocupados, barricadas foram erguidas e dezenas de mortes ocorreram desde o início dos conflitos, evidenciando a
violência dos protestos. Em fevereiro de 2015, o então presidente foi
destituído. Há ainda uma série de fatores que tem levado as pessoas às ruas,
como a crise econômica, a desigualdade social, a corrupção, o sucateamento dos
serviços sociais, a pobreza e o desemprego, além da forte repressão policial
contra os manifestantes. A situação na Ucrânia ainda está em aberto, em
primeiro lugar graças ao fato de ser a segunda maior economia da antiga União
Soviética, depois da Rússia, e também por passarem em seu território gasodutos
que fornecem o combustível à Europa, transformando assim os protestos em foco
de interesse de potências ocidentais e da Rússia.
No dia seguinte, tinha o sábado livre para organizar todos os equipamentos,
fazer uma caminhada na região sem grandes esforços e dormir cedo para no outro
dia seguir minha rota rumo ao Elbrus (em russo: Эльбрус).
Logo, Artyom e Vladislav fizeram companhia para uma atividade ao ar livre até onde
poderíamos avistar o cume da montanha mais de perto, passando antes por uma
queda d’água geladíssima, e assim ter um contato mais íntimo com a natureza
selvagem. Foi um dia lindo, sol a pino, altitude se mostrando, chegamos apenas
a pouco mais de três mil metros, suficientes para eu transpirar um pouco, adaptar-me
ao clima e ver a beleza cenográfica da região. Senti-me em casa, com o altar
branco diante dos meus olhos. Foi meu primeiro contato, um dia antes da subida
vertiginosa para o alto daquele nevado, meu primeiro olhar mais carinhoso,
minha primeira piscada de olho para que pudesse sintonizar uma onda de energia
positiva. Queria nutrir os sentimentos mais sublimes naquele lapso de tempo,
pois domingo seria um dia duro, como sempre é quando se quer conquistar algo
diferente. Num dia você recebe mais do que precisa, e noutro menos.
Nessa lei da compensação, sabia que estaria sujeito a pagar mais pelo
meu objetivo, não sabia quanto, mas sobrava disposição para conferir de perto. No
início da noite, já com tudo organizado, sentia-me feliz porque tinha feito novos
amigos, conhecido uma região que não constava nos meus planos e de quebra tinha
visto o Elbrus lindo e imponente, destacado no horizonte. Pude ver ainda a
crista principal da parte ocidental da Cordilheira do Cáucaso, e imaginei o que
havia por detrás, a Geórgia, o mar Negro e um infinito de mundo a ser
explorado...
Entre sonhos e ansiedade, acordei algumas vezes no meio da noite. Já era
chegada a hora. Café da manhã tomado, segui caminhando vagarosamente de Terskol
a Azao, pouco mais de dois quilômetros pelo asfalto, saindo de 2130 metros de
altitude. Apenas um aquecimento perto do que viria pela frente. Em Azao (2180 msnm)
localiza-se a base do sistema de teleférico. Segui diretamente para a rampa em
rocha e coloquei meu ritmo gradualmente, para me adaptar ao peso e à
temperatura, que de um calor tímido foi se nivelando para uma leve garoa, para
depois transformar-se numa pequena nevasca. Assim foram minhas primeiras horas
de ascensão, em ritmo forte, o que tomou-me três horas até a primeira parada
para alimentação, em frente a um café onde alojei-me da nevasca. Fiquei ali por
mais de uma hora me recuperando, já a 3470 msnm, ao lado da estação de serviço
de transporte por cabos Mir. A subida estava pesada e meu organismo reagia mal.
Reequipei-me com a bota plástica, crampons,
roupas impermeáveis e segui rumo ao ponto de parada obrigatório, o último
abrigo antes do cume, a 4100 msnm, onde deixaria meus pertences sem utilidade,
para então realizar o ataque em horário mais adequado. Lá poderia me alimentar
melhor e descansar enquanto esperava. Gastei ao todo seis horas até o refúgio
Prijut 11, nada mais que um container
de metal. Esse alojamento, além de carregar meu número da sorte, foi cenário de
uma passagem histórica. Os alemães ocuparam brevemente a montanha durante a
Segunda Guerra Mundial com dez mil soldados montanheses. Uma história,
possivelmente apócrifa, conta que um piloto soviético bombardeou a cabana
principal (Prijut 11), enquanto estava ocupada. Mais tarde, foi-lhe oferecida
uma medalha por não ter atingido a cabana, mas sim o estoque de combustível,
deixando-a intacta para as gerações futuras. Bem na dita cabana, como chamavam os
militares soviéticos, fui recebido por um ser autóctone, um senhor muito
simpático e barrigudo chamado Ivan, integrado àquele ambiente e sem proferir
qualquer palavra em outro idioma que não fosse o russo. Logo fui colocando
minhas coisas numa cama de madeira, troquei-me para aquecer o corpo, tomei
vários copos de chá para aliviar meus enjoos e comi alguma coisa salgada para a
pressão. Fui direto para a cama depois de alguns minutos e dormi pesadamente
por duas horas.
Eram vinte e uma horas passadas daquele longo dia que havia começado
cedo em Terskol, agora uma diminuta cidade baixa. Estava a mais de quatro mil
metros de altitude, havia dormido um par de horas e sentia fome. Logo preparei
minha comida instantânea acompanhada de uma lata de sardinhas. Sorvi mais
daquele chá abençoado e então me senti totalmente disposto. Nenhum efeito da
altitude, apenas um cansaço normal da escalada, em grande parte feita com neve
fofa, carregando uma mochila pesada e sob o frio da nevasca, que me deixara cabisbaixo
quando da chegada ao refúgio. Conheci meus vizinhos de quarto no abrigo, dois
bielorrussos simpáticos, Sergey e Anastasia, mas apenas a menina falava um
inglês simples e monossilábico. Foi o suficiente para iniciar uma conversa interessante
sobre montanhas, viagens e meu objetivo ali. Os dois e o cuidador do Prijut 11
espantaram-se com a minha subida e o que ainda viria naquela noite. Mas isso se
explica porque a maioria daqueles que passam pelo Elbrus estão habituados ao
regime de aclimatação tradicional, que leva de quatro a sete dias.
Despedi-me de todos, porque já estavam preparando suas camas. Tentei
dormir mais algumas horas, mas havia entrado em estado de alerta geral, parte
pela ansiedade natural, parte porque havia decidido seguir logo às duas da madrugada.
Restava pouco tempo e estava difícil relaxar para um último descanso. Deitei na
cama de madeira, entrei no meu saco de dormir, aqueci-me e as horas passaram
lentas enquanto lia "A Sonata a Kreutzer" (Tolstói, 1889). Às
duas horas e quarenta minutos daquela segunda-feira sai rumo à escuridão,
sozinho, equipado, aguerrido, mas atento aos riscos de enregelamento e
males da montanha. O caminho não era demarcado, mas havia um traçado fresco dos
veículos, os snowcats, utilizados
para ascender turistas que recorriam ao serviço.
Minha iluminação era limitada a pouco mais de cinquenta metros de raio,
o que me ajudava apenas a não sair muito da rota que havia estabelecido. Sabia
que um grupo formado por dez bielorrussos subiria ao cume naquele dia, baseado
nas informações que recebi no abrigo. Fui subindo e ganhando ritmo, me
aquecendo e tentando hidratar-me ao máximo com água morna de uma garrafa
térmica preparada com zelo, única fonte de calor para a madrugada. Fui bem
leve, mochila de ataque quase vazia, com comida e água, pois sabia que a
temperatura poderia aumentar com o sol nascente e precisava de espaço para
carregar meus pertences na volta. Fui muito agressivo na subida, pois sentia-me
bem, nenhuma sensação desagradável até que comecei a avistar o grupo acima.
Calculei uma hora de distância até eles.
Raios. Trovoadas. Tudo isso acontecendo atrás do maciço. Mais raios.
Fiquei parado e observando. Estava situado na crista do penhasco chamado de Pastukhov
Rocks, a 4700 msnm. Não havia nada na previsão do tempo sobre chuva ou
tempestade elétrica. Pensei no que fazer. Olhei o maciço calculando a rota e
imaginei onde tudo se passava. Dei uma desculpa para minhas vacilações e
continuei.
Desde o abrigo levei pouco menos de seis horas para alcança-los, logo na
faixa dos 5000 msnm. Neve fofa. Sem os crampons
e piqueta não teria conseguido imprimir tal ritmo. Pouco antes de chegar ao
grupo passei mal, senti choques no corpo e entrei em pânico, quase desisti, pois
meses antes havia sofrido o mesmo sintoma em Riobamba no Equador ao tentar
subir o vulcão Chimborazo (6268 msnm). Na ocasião cai desacordado depois de uma
nevasca, que teimei em resistir com roupa não apropriada, porque era um trecho
curto de ascensão até um abrigo a 4800 msnm, cumprido em apenas três horas correndo.
Mas subindo o Elbrus, na situação que estava, chegando aos 5000 msnm e de novo sozinho,
sem nenhuma possibilidade de resgate e numa encosta vertiginosa, não poderia
vacilar. Tive meus momentos de conflito interno, refleti, fui além do limiar de
segurança confesso, mas enfrentei o medo porque acreditava que grande parte
daquilo era um trauma mal resolvido. Logo me comuniquei com um dos bielorrussos
que falava pouco inglês, mas entendeu minha situação por completo. Pedi
permissão para ir ao lado deles, até que me sentisse melhor. Não queria voltar.
Fui escoltando os dez bielorrussos no final da fila por uma hora, quando de
repente todos param, uns vomitando, outros cabisbaixos, e Nikita, o que falava
inglês, se desculpando, pois voltariam. Disse que não poderia deixar seus
amigos sozinhos naquela situação. Despedi-me e continuei em solitário novamente.
Não! Atrás vieram três bielorrussos remanescentes do grupo que ainda sentiam-se
confiantes.
Ascendemos mais uma hora até o colo (5325 msnm), localizado entre os
cumes oeste (5642 msnm) e leste (5621 msnm). Nesse momento, depois de quase
oito horas de ascensão desde o Prijut 11, senti o peso da montanha. Tinha
acumulado até aquele momento duas horas de sono apenas. Antes, já havia
realizado a ascensão desde o vale de Terskol até o abrigo, o que levou seis
horas ao todo. Optei por subir sem aclimatação, em tiro único. Pouco
alimentado, sentia o corpo desidratado. Tudo isso parecia ser o efeito da
subida em ritmo acelerado, que ainda provocou enjoos contínuos. Meus pés já não
tinham mais a sensibilidade de antes. De repente o temor. Ainda enfrentaria a
parede no ataque final ao cume. Comecei a travar uma luta interna. A confiança
estava abalada, tive que recorrer a recordações, apoios espirituais, frases e
conselhos, meu mote esportivo – Tieni Duro! Neguei-me a recuar. Elaborei um
plano do que faria daquele ponto em diante. Tirei a roupa mais quente, o calor
já incomodava, minha boca estava ferida, lábios ressequidos. Sentia sono, uma
fraqueza enorme, mas sabia que se partisse para cima, afastaria essas sensações
naturalmente, ainda mais com a possibilidade de fazer cume. Um dos bielorrussos
perguntou:
– Estamos no horário?
– Sim, temos uma hora e meia para chegar.
– Acho melhor descer.
– Bem, eu vou. Se quiserem, vamos juntos em fila indiana.
– Tudo bem. Vamos revezando.
Foi importante o diálogo, porque passei uma confiança que me foi
devolvida na mesma medida. Seguimos rumo à parede, e começamos a abrir os
degraus na neve virgem e fofa, mas com alguns trechos duros de gelo. Entramos
num ritmo em que
fosse possível manter uma distância segura entre os montanhistas. Os movimentos
eram cadenciados, cada um dando o que podia. Eu ficava zonzo e às vezes parava
para me recuperar. Num determinado momento, quando seguia na frente da fila, tropecei
num dos crampons ao enganchar-me na
barra da calça. Deslizei pelo glaciar montanha abaixo como um foguete sem freio
rumo às rochas do centro do colo. Fiz vários movimentos até que de repente
consegui travar a piqueta depois de perder cento e cinquenta metros de
altitude. Foi um susto enorme, que para um corpo desgastado transformou os
momentos finais da escalada num martírio. Olhei para cima. Os bielorrussos em
silêncio! Alguns segundos depois, o único que falava inglês disse: “Pelo menos,
agora você sabe para que serve a piqueta!!!” Rimos todos juntos. Eu ri para não
chorar, porque teria que recuperar o passo e voltar à rota dos degraus. Um
deles me olhou desconfiado, e começou uma conversa no seu idioma com os demais.
Então Max, gaguejando em inglês, perguntou sobre minha experiência. Contei um pouco da minha
história. Fui breve, pois todo esforço me custava alto, e rapidamente relatei a
jornada desde a manhã de domingo. Estava atacando o cume com menos de vinte e
quatro horas na montanha, praticamente sem dormir.
Seus olhos arregalaram-se de espanto. Eles estavam ali há seis dias
entre aclimatação e ataque. Seguimos adiante. Faltando menos de vinte metros de
altura para o cume, quando meu altímetro marcava exatos 5630 msnm, recebemos
avisos de um grupo de socorristas com seus apitos. Ao mesmo tempo vimos de
longe um helicóptero sobrevoar a região. Eu dei de ombros, até porque não
havia qualquer problema com horários, sequer havia um registro oficial de
acesso à montanha. Eu estava por conta própria e estava visualmente chegando ao
cume. Meus pensamentos começaram a ocupar-se com o que faria lá em cima, com a
paisagem com a qual me depararia, com as emoções fortes que vinham ao pensar nas
pessoas queridas da minha vida, com aquela conquista, com a minha debilidade,
com certo medo, o respeito pelo altar que estava adentrando. Enfim, uma
profusão de sentimentos à flor da pele. A emoção superando a razão. Um diálogo
rápido e confuso começou:
– Vamos descer, eles estão chamando.
– Quem?
– A equipe de resgate.
– O que foi?
– Pediram para descer.
– Por quê?
– Não sabemos.
– Vou seguir.
Silêncio. Realidade onírica!
Pedi que não parassem, pois estávamos no cume, nada poderia mudar
aquilo. Seguimos mais alguns minutos e nos deparamos com uma cena de horror. No
momento, era impossível entender o que havia acontecido, mas um rapaz estava
morto e sua companheira estava ali, desolada. Não fizemos nada, apenas olhamos,
foi o tempo exato entre nossa chegada e os silvos da equipe de resgate, que foi
acionada mais cedo pela namorada do rapaz, que morrera pouco mais de duas horas
antes da nossa chegada. O helicóptero se aproximou, fomos banidos do cume, já
que a situação era tensa.
Mais tarde, descobri num site local que o casal havia feito a ascensão
pela face norte do Elbrus, saindo de Mineralnye Vody. Momentos antes, ao conquistarem
o cume, enquanto a menina tirava uma foto do seu namorado com os bastões de
caminhada erguidos, um raio o atingiu fatalmente. Eu fiquei perplexo pela
notícia, lida depois de viver todo aquele drama de perto e testemunhar o casal
por míseros minutos. Os raios... malditos!
O Elbrus coleciona uma lista importante de acidentes fatais. Muitos o
consideram uma montanha fácil, mas lembremos da ucraniana Maria Khitrikova, tida
como a “Mulher Maravilha” do montanhismo de altitude, que precocemente aos vinte
e um anos de idade, em março de 2012, foi encontrada a 4700 msnm à esquerda de
Pastukhov Rocks, provavelmente depois de deslizar na geleira. Em maio de 2006
foram sete mortes de uma só vez, quando um grupo, ao se
perder numa altura de 5300 msnm, resolveu abrigar-se na neve e morreu congelado
após a temperatura cair para menos de cinquenta graus negativos. Voltando mais
ao passado, durante os primeiros anos da União Soviética, o alpinismo tornou-se
um esporte popular, e houve um tremendo tráfego de pessoas no Elbrus. No
inverno de 1936, um grupo inexperiente de membros da União da Juventude
Comunista6 (em russo: Комсомо́л)
tentou escalar a montanha, e terminou por sofrer diversas baixas quando
escorregaram no gelo e caíram para a morte.
Realidade onírica ainda presente. Desci débil, fraco e ao chegar novamente
no colo fiquei quase uma hora parado buscando forças para retomar o caminho com
destino ao Prijut 11. Mas também fiquei ali pensando em tudo. Levei pouco mais
de duas horas até encontrar o abrigo. Estava atônito. Não entendia o significado
daquela história recém-vivida. Fresca demais e latente. Arrumei minhas coisas,
ainda cambaleando, mudo e perplexo, sentindo-me um farrapo, desci o que restou
da montanha até Azao, depois Terskol. No vale chorei, não compreendia nada. As
noites seguintes foram de distúrbio. Pesadelos, choro contido, medo,
alucinações, sombras ao redor no quarto e uma tristeza.
Estamos sujeitos às surpresas da vida. Nem sempre conseguimos realizar
nossos sonhos dentro de um script. Isso
não significa que o sonho não foi alcançado, muito menos que tenha menor valor.
Temos que saber lidar com os obstáculos, e contornar a situação sempre
lembrando que a maior dádiva é estar vivo. A vida, em si, já é um sonho
realizado, um milagre coexistindo com as agruras do mundo que habitamos. O
sentido de tudo está oculto na maioria das vezes, sujeito a interpretações, e o
que pode ser benéfico para um, pode ser maléfico para outro. Poucas são as
unanimidades, mas uma delas é expressa pela vontade comum da busca pela
felicidade. Mas isso também pode ser visto como relativo ao senso de cada
indivíduo. Porém, o exercício da busca é comum a todos, sem o qual não se
conquista nada. Deixar de lutar é uma forma de ser infeliz.
Segui meus passos para a rota Transiberiana com pensamentos pesados,
confusos, cercados de mistério. Para livrar-me daquilo deveria mergulhar numa
nova experiência. A Sibéria. Na literatura russa ir para a Sibéria é ir para
dentro, para a pureza da brancura da neve. Não por acaso a maioria dos grandes
romances termina na Sibéria. Na neve que é como o papel branco de uma nova
página a ser escrita.
E o que dizer da linguagem, da comunicação, para mim, o maior obstáculo
encontrado na Rússia, maior ainda que a montanha que escalei? Foram momentos de
introspecção, vergonha, ansiedade e medo. Quase perdi o avião para Nalchik ao
tomar o metrô no sentido contrário ao do aeroporto em Moscou. Acabei pegando o
último vagão para o terminal de embarque a três minutos da sua partida. Fui
salvo pela sorte de encontrar em meio a milhares de pessoas um russo que falava
inglês, em pleno horário de pico na sexta cidade mais populosa do mundo. Usei
alguns critérios, é claro, e acertei na mosca. Mas, e essa linguagem que independe
de origem? Àquela que todos estamos sujeitos. Essa língua pra mim foi a morte,
ponto misterioso de onde viemos e para onde voltaremos. Ao fim e ao cabo, parti
da não-comunicação para o pleno entendimento. E talvez essa tenha sido a viagem
dentro da minha viagem.
Bolshoye spasibo! Do svidaniya!
1
Mujique era a denominação dada ao camponês russo, normalmente antes de o país
adotar o regime socialista em 1917. Ela indica um certo grau de pobreza, uma
vez que a maioria do mujiques eram servos (chamados de almas na Rússia) antes
das reformas agrícolas de 1861. Depois desse ano, os servos receberam
determinadas áreas para trabalhar a terra e se tornaram camponeses teoricamente
livres, mas que em muitos casos ainda trabalhavam em um regime de servidão,
muito parecido com o que aconteceu no Brasil logo após a abolição da
escravatura. Esses camponeses livres foram então conhecidos até 1917 como
mujiques. Na literatura os mujiques foram retratados de diversas formas. No
romance Crime e Castigo (1866) de Dostoiévski aparecem várias alusões aos
mujiques como personagens de uma condição social inferior.
2
Os Sete Cumes são as montanhas mais altas de cada continente, onde a Antártida
entra na lista e a América se encontra separada em América do Norte e América
do Sul. Os Sete Cumes são compostos assim: Ásia: Everest (8848 msnm) – América
do Sul: Aconcágua (6962 msnm) – América do Norte: Monte McKinley (6198 msnm) –
África: Kilimanjaro (5893 msnm) – Europa: Monte Elbrus (5642 msnm) – Antártida:
Maciço Vinson (4892 msnm) – Oceania: Pirâmide Carstensz ou Puncak Jaya (4884
msnm).
4 Em topografia e orografia, a proeminência
topográfica, também denominada fator primário, altura relativa ou altura autônoma,
é um conceito usado para a classificação de colinas e montanhas. Define-se por desnível
mínimo para descer desde o cume de uma colina ou montanha até chegar a outra
qualquer, desde que seja mais alta, isto é, tenha altitude superior. Quanto
maior proeminência topográfica tem uma montanha, mais destaca-se entre as que a
rodeiam, independentemente da sua altitude. A proeminência, tal como a
altitude, é um valor absoluto para uma montanha, já que depende unicamente do
ponto mais baixo que a une com qualquer outro cume mais alto. Com exceção do
Monte Everest, toda montanha é superada por outra de maior altura. Isto significa
dizer que para qualquer outro monte tem de existir algum lugar tal que para
passar desse a outro mais alto, deve-se perder a menor altitude possível. Esta
simples observação, que já foi estudada pelo físico escocês James Clerk Maxwell,
levou-o a pensar na existência de uma relação inequívoca entre cada um dos
cumes da superfície terrestre e um ponto de sela. O aspecto mais complexo desta
análise consiste em determinar qual é o trajeto de desnível mínimo que permita
relacionar as duas montanhas.
5 Seven Summits Club é um clube internacional de
alpinismo voltado para as expedições mais extremas do montanhismo, por exemplo:
Sete Cumes; Três Polos; os Catorze 8000 m (sic), ou seja, a conquista das
catorze montanhas acima dos oito mil metros de altitude; e o Snow Leopard, que significa a conquista
de todos os cinco cumes acima de 7000 msnm no território da antiga União
Soviética. O Snow Leopard (em russo:
барс Снежный) foi um prêmio de montanhismo soviético dado aos montanhistas mais
experientes. Ele ainda é reconhecido na Comunidade dos Estados Independentes ou
países que formavam a antiga União Soviética.
6 A Integração de
Jovens Comunistas Leninista (em russo: Всесоюзный Ленинский Коммунисти́ческий
Сою́з Молодёжи - ВЛКСМ),
geralmente conhecida como Komsomol
(em russo: Комсомо́л, uma abreviação
silábica do russo Kommunisticheskii Soyuz
Molodyozhi), foi a divisão da juventude do Partido Comunista da União
Soviética e um partido político da União Soviética representado no Soviete
Supremo da União Soviética. A Komsomol
em sua forma mais antiga foi criada em centros urbanos em 1918. Durante os
primeiros anos era uma organização russa, conhecida como a Confedereção
Comunista de Jovens Russos, ou RКSМ. Durante 1922, com a unificação da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), foi reformada em uma
agência de integração, a divisão de jovens da Integração do Partido Comunista.
Publicado originalmente na revista Mountain Voices.
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